Continuo pensando a África dentro do contexto seiscentista, sobretudo tentando entender como ela foi pensada. Entretanto, nem só de África vive minha pesquisa. Estou avançando também em outras frentes, como, por exemplo, a questão indígena.
Minhas fontes são relatos de missionários que, mais que descreverem as realidades que percebem, criam novos mundos, novos conceitos, novos significados. As crenças que eles trazem consigo são maiores que as adversidades que encontram em seus caminhos, o que implica a criação de novas chaves de leitura para as realidades recém-concebidas (ou conhecidas?). Vejamos um exemplo:
Este gentio parece que não tem conhecimento do princípio do Mundo, do dilúvio parece que tem alguma notícia, mas como não tem escripturas, nem caracteres, a tal notícia é escura e confusa; porque dizem que as águas afogarão e matarão todos os homens, e que somente um escapou em riba de um Janipaba, com uma sua irmã que estava prenhe, e que destes dois têm seu princípio, e que dali começou a multiplicação.
Nesse trecho, retirado dos Tratados da Terra e Gente do Brasil, podemos notar que o dilúvio, acontecimento bíblico, parte do arcabouço cultural europeu, é transferido para a cultura indígena, como se eles concebessem tal acontecimento da mesma forma que os europeus. Nesse caso, há uma transferência de valores, julgando-se mesmo que o dilúvio, tal como "contado" pelos índios, está errado porque eles só têm alguma notícia.
A necessidade de que esses homens sejam pré-cristãos, talvez pertencentes a algum dos povos das tribos de Israel, leva os brancos a construírem-nos de acordo com a sua vontade e necessidade, e não conforme os percebem. Talvez possamos ir mais além, conjecturando - e acredito mesmo que seja isso - que os índios eram percebidos dessa forma, ocorrendo um constante apagamento dos traços descaracterísticos daquilo que os europeus buscavam. Essa percepção também é um campo fluido pois se, por ora, busca-se a aproximação entre uns e outros, noutro momento requer-se o distanciamento. Nesse sentido, os termos gentios e bárbaros se contrapõe, vez por outra sendo utilizados para referir-se às mesmas situações, mas nas quais os interesses dos sujeitos enunciadores dos discursos sofreram variações. Por exemplo: ao se almejar implantar a catequese no seio de determinados grupos indígenas, é comum encontrar fontes descrevendo esses grupo como gentios - aquele que está tal qual veio ao mundo, não possuindo religião nem idolatria. Entretanto, se desejam escravizá-los, sobretudo recorrendo ao que se chamou de Guerra Justa, os que eram gentios tornam-se bárbaros. Muitos de seus costumes, até então pouco notados, tornam-se evidentes e transformam-se em práticas mágicas e religiosas. A mutação está mais presente no discurso que no sujeito, ocorrendo mediante as necessidades volateis doutro sujeito: o enunciador.
A guerra que se trava, dessa forma, decorre mais no campo semântico e conceitual que no prático e real. Esse último recolhe seus efeitos, construídos na argumentação e na compreensão do mundo alcançada pelos religiosos. Vale ressaltar que há traços comuns desse processo tanto no Brasil como na Guiné, conforme apresentaremos mais adiante.
E a pesquisa segue!
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