quarta-feira, 9 de junho de 2010

Pensando a Etnohistória.

Olá, pessoal! Dando continuidade às nossas atividades, penso ser interessante pensarmos um pouco a respeito da modalidade de História que buscamos praticar: a etnohistória. PorémPassemos a analisar o que caracteriza a etnohistória. Antes de atentarmos para o prefixo etno, o que entendemos por História?

É possível definir história como um conceito universal, já que a experiência comum da passagem do tempo é consensual, mas também particular: na dimensão dos eventos e quando o acontecimento é culturalmente valorizado. A história pode, ainda, ser tomada como uma disciplina, ou como uma categoria fundamental. Nesse último sentido, e nos termos de Durkheim, estaríamos lidando com uma “categoria básica do entendimento”, um a priori: não há sociedade que não construa sua noção de tempo, mas cada cultura a realiza empiricamente de forma diversa [1].

Amparados por Lilia Schwarcz, entendemos a História como uma reconstrução do passado, encadeada pelo presente que mantém ambos separados por meio do tempo. A noção de tempo, dessa forma, é essencial para que compreendamos a história e possamos empregá-la enquanto conceito a outras sociedades, com noções de tempo distintas do tempo ocidental (cronológico), mas que não perdem de vista as dimensões passado e futuro.

Considerando o passado como perspectiva essencial ao fazer histórico, podemos classificar toda tentativa de História, enquanto disciplina, como uma tentativa diacrônica de representação da alteridade, visto que o presente, personificado no historiador, aplica seu olhar ao passado buscando compreendê-lo. A etnohistória, por sua vez (e por trabalhar com documentos produzidos por terceiros a respeito de determinado povo), trabalha com a alteridade na dupla dimensão: se, por um lado, ela é diacrônica, visto o distanciamento temporal entre o objeto de estudo e o estudioso, ela é sincrônica ao buscar estabelecer relações entre as alteridades que se chocam no espaço/tempo determinado. Essa dimensão do trabalho etnohistórico confronta-se com aquela que toma a perspectiva do sujeito da prática discursiva como sua, considerando apenas a alteridade sincrônica. Acerca desses dois posicionamentos frente às fontes históricas, Schwarcz afirma aque:

(...) uma série de pesquisas antropológicas vem reconsiderando as maneiras de fazer essa “história do encontro” e criticando a representação do nativo como um “elemento passivo” de sua história. De um lado, há toda uma produção atenta às lógicas políticas e culturais desses contatos, e que tem a sociedade ocidental como referência de análise. De outro, um conjunto de trabalhos busca não uma história (ocidental) dos índios brasileiros, mas uma história indígena em seus próprios termos. Trata-se de uma linha que, em vez de acreditar que o discurso sobre os povos de tradição não européia serve para iluminar nossas “representações do outro”, passa a indagar de que forma os “outros representam os seus outros” [2].

O dilema epistemológico do tempo faz-se presente nessas duas formas de abordagens, visto que a primeira adota o observador e seu tempo enquanto referência para análise e a segunda busca perscrutar a história do observado através dos olhos do observador. Há uma dupla lente nessa perspectiva, que busca resgatar o passado de determinados grupos sociais revolvendo arquivos que já se caracterizam como leituras e interpretações de tais grupos, perscrutando informações acerca da cosmologia deles, mas deparando-se como essa foi entendida por seus observadores primeiros. Há uma dupla alteridade, duplamente representada no trabalho do historiador: como este representa o outro temporal e esse último o outro espacial.

O tempo, na etnohistória, é mais que um dilema epistemológico: é também metodológico. Muitos trabalhos que tratam de história indígena tendem a entender os fatos apresentados na fonte através de estudos etnográficos que partem do presente ou significar tais fatos a partir de problemas da atualidade. Tomemos como tema as análises acerca das migrações dos Tupinambá [3] para exemplificar o que dissemos.

Ao analisar os trabalhos de Alfred Metraux acerca das migrações tupinambás [4], Cristina Pompa constata que o autor intercala o uso de fontes quinhentistas e seiscentistas com informações decorrentes de etnografias dos séculos XIX e XX. Os mitos da Terra Sem Mal e do messianismo Tupinambá são tratados como categorias explicativas, dessa forma, relacionando-se as duas naturezas de fontes, difusas no tempo. Pompa afirma que “o arcabouço metodológico que circunscreve esse mito consiste me explicar a cultura tupinambá pela cultura guarani moderna, e considerar, ao mesmo tempo como ‘pressuposto’ e como ‘conseqüência’, a segunda como derivada da primeira” [5].

Florestan Fernandes analisa as migrações partindo da idéia de conflito e afirma que “no começo do século XVII existiam poucos Tupinambá no Rio de Janeiro e arredores. Foram exterminados nas guerras contra os portugueses ou então migraram” [6]. Preocupado em descobrir mecanismos de funcionamento da sociedade Tupinanmbá, busca justificar tais migrações relacionando-as com a situação social vivida pelos grupos no contexto do encontro intercultural, tratando os índios como vítimas do processo histórico no qual estão envolvidos.

Como notamos, o trabalho de Métraux esforça-se, de acordo com Pompa, para compreender a situação migratória como decorrente das convicções internas do grupo, sem relação com o contato inter-étnico, e recorre a fontes de temporalidades distintas para corroborar sua tese. Fernandes, por sua, vez, recorre ao encontro enquanto fator modificador da realidade indígena pela perspectiva externa: há uma mudança na forma de vida e de compreensão do mundo indígena decorrente da ação dos portugueses. As causas do fenômeno, dessa forma, são externas. Ao contrário de Métraux, vale ressaltar, Fernandes avalia a ausência de fontes que remetam a uma conclusão precisa, afirmando antes que “dentro de pouco tempo deixaram de ser mencionados explicitamente nos documentos históricos disponíveis” [7].

Pompa, por sua vez, busca aliar as duas vertentes acima, considerando o mito da Terra Sem Mal da perspectiva de Metraux e buscando razões internas à cultura indígena que, associadas aos fatores externos, levaram a tais migrações. A autora afirma que os encontros culturais são geradores de realidades conjuntas, nas quais há o somatório de fatores internos e externos:

A presença dos brancos não pode ser percebida apenas como desencadeadora de reações ou resistências, vistas em termos de volta aos costumes nativos, mas como uma realidade nova que obriga os diferentes grupos, com diferentes modalidades, a reconstruir simbolicamente, mas também historicamente, o mundo. O que foi chamado de “messianismo tupi-guarani” pode ser um produto original sem deixar de ter como causa o choque cultural: esta é a tese aqui proposta [8].

Percebemos que Pompa articula o relato apresentado nas fontes com o contexto social vivido por seus autores (religiosos europeus) e objetos (índios) enquanto uma situação de leitura e significação mútua, na qual os dois modificam-se em decorrência de sua coexistência.

Finalizando nossa discussão a respeito da Etnohistória, Ronald Raminelli analisa o trabalho de Pompa e diz-nos que a autora buscou entender “as traduções, o deslizamento de sentidos entre os universos simbólicos dos colonizadores e dos indígenas” atentando-se para o perigo de intercambiar informações (temporal e espacialmente), na tentativa de suprir lacunas apresentadas pelas fontes. Tal metodologia de análise documental (sincronia, diacronia e análise da historicidade dos encontros culturais), de acordo com Raminelli, garantiu a Pompa uma tese que se diferencia de boa parte daquelas produzidas no âmbito da Etnohistória [9]. Enfim, trataremos, nas postagens seguintes, de definir nosso objeto partindo dessa perspectiva da História ligada à etnologia: estudamos a alteridade na diacronia.

Abraços, pessoal, bom fim de semana a todos!




[1] SCHWARCZ, Lilia Mortiz. Questões de Fronteira: sobre uma antropologia da história. In Novos Estudos. n72. Julho/2005. p.120.

[2] Idem. 130.

[3] A grafia utilizada para nomes de grupos indígenas e africanos está de acordo com a Convenção da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), de 1953. Segundo Cristina Pompa, a “letra maiúscula para os nomes tribais (com a minúscula no emprego adjetival), sem flexão de número e gênero (...) é um modo, simbólico, de reconhecer um coletivo lingüístico, étnico e territorial: não um somatório de indivíduos, mas uma coletividade única, distinta da comunidade nacional, já que os grupos indígenas não têm, hoje, países ou pátrias que se possam escrever com a letra maiúscula.” In POMPA, op. cit. p.30.

[4] MÉTRAUX, Alfred. A religião dos Tupinambá. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1979 (1928)

[5] POMPA, Cristina. Religião como tradução: Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. São Paulo: Edusc. 2003. p.105-106.

[6] FERNANDES, Florestan. A Organização Social dos Tupinambá. Difusão Européia do Livro: São Paulo. 1963 (1949) p.33.

[7] Idem.

[8] POMPA, op. cit. p.114.

[9] RAMINELLI, Ronald. O dilema do tempo na ento-história. In Tempo. Vol.12, n23, Julho-Dezembro. 2007. Rio de Janeiro.